Durante o último Verão a expetativa era grande... Afinal este era um trilho que se encontrava encerrado há algum tempo e que reabriria ao público a partir de setembro.
O “Camino de Hierro”. Ou portuguesmente falando, o “Caminho de Ferro”. Trata-se de um troço que liga a estação La Fregeneda ao cais de Vega Terrón, em terras fronteiriças do município de Salamanca, em Espanha. Este troço é apenas uma pequena parte (17 km) de um total de 77 km que possui o ramal espanhol da chamada Linha do Douro. Este trilho fica em pleno Parque Natural das Arribas do Douro e acompanha o rio Águeda até à sua foz, em pleno Rio Douro.
A linha começa em La Fuente de San Esteban, onde se junta à linha Medina del Campo-Salamanca-Fuentes de Oñoro. Na localidade fronteiriça de Barca d'Alva, a linha liga ao troço português que segue em direção ao Porto. Desta forma, a segunda maior cidade portuguesa ficou ligada a Salamanca e, por extensão, à linha de França que chega a Medina del Campo.
Desafiado pelo meu primo, efetuamos a inscrição como participantes numa caminhada com algumas semanas de antecedência. Existe um cuidado muito grande por parte das autoridades espanholas que gerem este trilho em limitar o número de pessoas que o percorrem a cada momento. Porque o mesmo dispõe de fauna e flora únicas, bem como de uma património material e cultural precioso.
A caminhada estava prevista para um domingo de setembro, com início às 8 da manhã, hora espanhola. Assim sendo, tratamos de reservar alojamento para a noite sábado em La Fregeneda, para nos apresentarmos bem dormidos e descansados na manhã seguinte. Sim, que a previsão era de caminharmos 17 km durante um tempo aproximado de 6 horas…
Partimos na manhã de sábado, num carro com uma comitiva de cinco, com o objetivo de chegarmos ao alojamento, em La Fregeneda, ao início da tarde.

Como bons portugueses em terras de Espanha, claro que fizemos uma pausa na viagem, para almoço num restaurante de um dos pequenos vilarejos que encontramos no caminho.
Missão cumprida: 'tapas' diversas e acumulação de energia prolongada até ao dia seguinte.

À medida que nos aproximamos da fronteira, o céu foi ficando cada vez mais 'fechado'.
As previsões para o dia seguinte, o da caminhada, apontavam para aguaceiros, o que nos foi deixando de sobreaviso. Mas, viu-se depois, levamos o equipamento básico necessário e suficiente.
A alvorada de domingo iniciou-se cedo: cerca das 6h30 da manhã, hora espanhola. O início do troço não ficava longe, mas havia que tomar um bom pequeno almoço, colocar comida e bebida q.b. nas mochilas de cada um e dar uma última vistoria ao equipamento, antes de nos fazermos à estrada.
O sol ainda não se vislumbrava no horizonte, mas já dava para perceber que o céu se apresentava bem nublado. Rolamos durante cerca de 2 a 3 kms em estrada asfaltada e eis que saímos da mesma, entrando em estrada de terra, seguindo as indicações dadas pelas tabuletas no caminho.
O dia ainda se apresentava naquele lusco-fusco matinal, onde se vislumbra o que está à nossa volta, mas ainda exige que os faróis do carro se mantenham ligados. Circulavamos a 30/40 km por hora, cuidando de evitar algumas pedras pelo caminho, quando, ao sair de uma curva deste caminho sinuoso e apertado, avistamos dois pequenos focos luminosos no meio da estrada de terra, apontados para nós. Demoramos um a dois segundos para perceber o que era...
"Olha um javali!"... O animal demorou o mesmo tempo que nós a perceber o que tinha pela frente, mas quando o percebeu, deu uma corrida rápida para fora da estrada e rapidamente desapareceu na vegetação alta e abundante que ladeava a estrada de terra. Aquele encontro inesperado prometia coisas boas para a caminhada...
Um pouco mais à frente deparamo-nos com o início do trilho: a estação de combóios de La Fregeneda. E à nossa espera tinhamos uma equipa de guias, a qual nos acolheu simpaticamente, nos distribuiu coletes refletores e uma lanterna de bolso para quem não veio preparado.


Também por eles fomos alertados para o que iríamos encontrar: ao longo do percurso atravessam-se 20 túneis - o maior dos quais com quase 1.600 metros de extensão - e transpõem-se 10 vertiginosas pontes metálicas, algumas delas construídas por engenheiros da escola de Gustavo Eiffel.
Sendo este um percurso linear extenso, no final do mesmo teríamos um guia com uma viatura de 9 lugares à nossa espera, para nos transportar de volta à estação de La Fregeneda e ao nosso carro. Previam fazer 3 viagens de ida-e-volta para transportar a totalidade dos caminheiros (pouco mais de 20).
Ao longo do trajeto estes guias iriam aparecer pontualmente (acedendo ao trilho por atalhos só por eles conhecidos) para nos dar maior segurança e cuidar de saber se alguém poderia precisar de algum tipo de apoio.

Recebemos ainda uma forte recomendação: nos túneis a atravessar, principalmente no 1º e 3º, não deveríamos permanecer muito tempo no interior dos mesmos, nem deveríamos apontar as lanternas para cima. Porque era elevada a probabilidade de neles se albergarem morcegos, animais notívagos.
Após a palestra inicial dos guias, e depois de efetuadas as fotos da praxe, colocamos-nos ao caminho!
Note-se numa das imagens acima, a adaptação especial que fizeram a uma viatura: colocaram à frente e atrás um dispositivo que lhes permite conduzir a mesma em cima dos carris do caminho de ferro e, assim, percorrer o trilho em condições mais fáceis e rápidas, caso necessário.
Por volta do Km 1 deparamo-nos com o Tunel 1: La Carretera. O mais comprido de todos, com mais de 1,5 km de extensão, deu-nos uma boa primeira ideia do que estava para vir...
A caminhada pelo túnel foi efetuada em silêncio, apenas se ouvindo os passos dos caminheiros sobre as pedras, os carris e as tábuas que os unem.


Ao km 2 encontramos a primeira ponte do trilho: a Ponte Pingallo. Com 11 mts de comprimento, situa-se 4 mts acima do rio Pingallo, o qual desagua no rio Águeda.
Mais 19 pontes nos esperam ao longo do trilho...
Ainda no início desta aventura, rapidamente percebemos que o trilho, muito embora não apresente uma inclinação acentuada ou obstáculos complexos, a verdade é que nos apresenta um percurso de quilómetros sobre duras pedras rugosas e afiadas, passíveis de resvalarem se o pé for mal assente.
Percebemos que seria necessário uma atenção permanente ao piso, aos espaços onde colocar os pés enquanto caminhavamos, ainda que não abdicando de olhar em volta e em frente para desfrutar da bela paisagem.

Surgem os primeiros raios de sol por detrás das colinas. A paisagem vai rapidamente mudar de cor, de tonalidades. O céu apresenta-se com algumas nuvens no horizonte, mas percebe-se que o sol vai ter oportunidade de brilhar sobre o trilho que percorremos.


A vista sobre o rio Águeda é magnífica. O trilho acompanha o seu serpenteado em direção ao rio Douro.

As estruturas mistas de metal e madeira que ligam as encostas das montanhas, cortando caminhos, suavizando o percurso de combóios de outrora, são agora por nós percorridos.
Ainda que entusiasmados e maravilhados pela paisagem que se desvenda à nossa volta, mantemos sempre um elevado cuidado com o sítio onde colocamos os pés. Não é seguramente o melhor trilho para quem vertigens...


Ao longo do trilho deparamo-nos com várias edificações em ruínas. Uma aqui... outra alí... vestígios da importância que este troço de caminho de ferro teve outrora, em que os combóios que o percorriam ligavam aldeias, vilas e cidades de uma região raiana, historicamente isolada.




O Túnel 3: Morgado, com 423 mts, é o túnel mais 'especial' de todos. Ele alberga uma colónia de cerca de 12.000 morcegos, uma das mais numerosas de toda a Península Ibérica.

É um lugar tão precioso em termos da fauna e ecologia, que é muito respeitado e preservado. Por esse motivo, no início do Verão, em época de reprodução, o túnel permanece fechado e os caminheiros devem utilizar um caminho alternativo, sinalizado e habilitado para o efeito. Da mesma forma, deve-se apontar as lanternas sempre para o solo, para não perturbar os morcegos. É também um túnel curvo que faz com que o caminho-de-ferro siga em direcção a Portugal sem perder de vista o curso do rio Águeda.
Percorremo-lo em profundo respeito pelos seus habitantes: em silêncio, sem parar, apontando as lanternas para o chão. À medida que nos íamos aproximando do local onde se concentra a maior parte da colónia, o som emitido pelos milhares de morcegos era tal... que impressionava.
Atente neste vídeo e no som captado a partir do seg. 26:
Nota importante para quem pretender percorrer este trilho durante o presente ano: em 2024 o Túnel 3 estará encerrado ao público de 16 de março a 15 de agosto, para proteção da numerosa colónia de morcegos. Os caminheiros terão de percorrer um caminho alternativo que contorna este túnel.
E deixando para trás este carismático túnel, vamos percorrendo outros túneis...
Percorremos o Túnel 4: Poyo Rubio, com 84 mts de comprimento. E também o Túnel 5: La Belleza, com 76 mts, o Túnel 6: Poyo Valiente, com 358 mts, o Túnel 7: El Pico, com 46 mts de comprimento e o Túnel 8: Cega Verde, com 86 mts de comprimento.
E a beleza deste trilho não parou de nos surpreender. Ora vejam:

Os carris que nos trazem e nos levam... que nos levam e nos trazem... Para ir ao encontro de algo ou alguém?... Ou para receber algo e alguém que vem ao nosso encontro?...



A história desta linha está contada à nossa volta... basta estar atento.
E a flora deste local encantador também se manifesta de múltiplas e belas formas e cores:
Um lugar que se faz poesia aos nossos olhos e sentidos...

E que dizer deste quadro 'pintado' pelo Homem e pela Natureza à entrada do Túnel 11: Cega Viña, com 94 mts de comprimento?


Mais ou menos por esta altura da nossa caminhada, a chuva fez-se presente.
Inicialmente de forma tímida. Depois, durante alguns minutos (poucos) quis-nos mostrar que também faz parte desta paisagem diversificada e maravilhosa.
Mas sendo este um trilho repleto de túneis, nada como correr até ao mais próximo e aí aguardar por um tempo mais seco.
Mas continuamos a nossa caminhada... percorrendo ao km 11 o Túnel 15: Los Poyos, com 37 mts de comprimento.


A que se segue a Ponte de Los Poyos. Cerca de 11 kms percorridos... e 6 kms por percorrer...


No Túnel 16: La Porrera, com 330 mts de comprimento, o cansaço chegou.
Nada de mais, mas devemos estar atentos aos sinais do nosso corpo.
E nestas caminhadas, uns minutos de descanso, ingerindo líquidos e alguns alimentos, fazem maravilhas!
E com a satisfação de estarmos preste a cumprir os últimos kms de um percurso belíssimo, em pouco tempo percorremos os Túneis 17 e 18 e os dois últimos túneis do trilho: o Túnel 19: Las Almas, com 73 mts de comprimento e o Túnel 20: El Muelle, com 239 mts de comprimento.


Para terminar o percurso atravessamos a penúltima ponte do percurso: a Ponte El Embarcadero, com um comprimento de 11 mts. E deixamos por atravessar a - last but not least - a Ponte Internacional sobre o rio Douro, ligando Espanha a Portugal.


Depois de 6 horas de caminhada, tivémos a prometida viatura de 9 lugares, a qual nos levou de volta à estação de combóios de La Fregeneda e ao nosso carro. E, quase logo em seguida, iniciamos o caminho de volta a casa.
Mas trouxemos connosco a memória de muitas coisas bonitas e momentos bem passados!

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Marco Moura Marques
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